19 junho 2023

Tour du Mont Blanc - Junho 2022 (festa dos 40 anos)


Pois é, cheguei aos 40 em 2022. Contente por ter atingido a meta do meu 1/3 de vida (sim, vou durar até aos 120, menos que isso é derrota). Estava a falar com o meu bom amigo André que de viagens percebe ele (vejam o IG dele aqui), já que também iria fazer 40 e queríamos celebrar de forma única. 

Começamos então a planear fazer o Tour Du Mont Blanc, ou TMB como lhe irei chamar a partir de agora. O TMB é o mais famoso percurso pedestre da Europa, um percurso circular de 170km à volta do Monte Branco com um desnível de 10km e que passa por 3 países: França, Itália e Suiça. Fiquei super excitado com esta ideia e comecei logo a preparar-me para tal no inicio do ano (a viagem seria em Junho), e achei que era a maneira ideal de celebrar os nossos 40 anos e mais de 20 de amizade.

Decidi que a data ideal seria o início de Junho. Não estaria calor abrasador ainda, não haveria muitas pessoas logo os refúgios não estariam cheios e as viagens seriam acessíveis. Qual seria o downside disto? A questão de ser cedo na suposta época de trekking, o normal é ser a partir de meio junho, e a possibilidade de haver algumas coisas fechadas pelo caminho (teleféricos ou mesmo refúgios).

Infelizmente o André deu-me a notícia de que não me poderia acompanhar devido às viagens dele, não iria conseguir estar na Europa naquela data e então decidi ir na mesma sozinho. Tentei convencer algumas pessoas a ir comigo, mas ninguém se mostrou disponível e não era isso que me iria deter. Andei semanas a preparar a viagem, comprei o guia da Cicerone chamado Walking the Tour of Mont Blanc - Complete two-way trekking guide que li antes da viagem e levei comigo no percurso, vi dezenas de vídeos no youtube de outras pessoas que fizeram o mesmo tour, li vários sites e reviews, principalmente o site TourDuMontBlancHike onde até tem uma lista do que levar para não falharmos com nada. Nas semanas antes da partida comecei a fazer a mochila com todo o material, a testar a maneira de acomodar tudo, fazer caminhadas com o peso às costas para ver onde melhorar e se realmente as minhas pernas estavam preparadas (nunca estão) e de repente chegou o dia da partida! Portanto agora é o tempo de vocês se agarrarem à vossa bebida favorita, bem fresquinha (se for o caso) e venham comigo nesta viagem incrível!

Cheguei a Genebra no dia 4 de junho ao final da manhã e após uma espera de 4 horas pelo autocarro cheguei a Chamonix ás 18h após quase 2 horas de viagem. Dei uma volta pela cidade, absorvi toda a energia, olhei diversas vezes para a imponente montanha do Mont Blanc, comprei umas coisas na Decathlon e fui apanhar o comboio para Les Houches onde fica o KM 0 do TMB. 25 minutos depois estava de novo fora do comboio e andei uns 30 minutos até chegar ao Camping Bellevue, o meu destino nesse dia. O Camping Bellevue é apenas o final de uma pista de ski onde se pode montar a tenda, não me lembro de quanto paguei, mas foi muito pouco e tem o WC do complexo de ski para usar à vontade, com duches incluídos. Fui comprar uma pizza e voltei à tenda para me sentar e absorver a paisagem que estava à minha frente. É isto, estou aqui, amanhã vai começar esta loucura de alguns dias. Mal podia esperar!


O inicio do TMB
Camping em Les Houches



Dia 1 - Les Houches a Les Contamines (18.5 km, tempo previsto: 7h30) - Acordei por volta das 7h30, arrumei tudo e fui em direcção ao Carrefour para comprar mantimentos. Logo no Carrefour apanhei um grupo de pessoas que me pareciam americanos e que também iam fazer o TMB. Ao menos parece que não vou totalmente sozinho e se acontecer alguma coisa tenho a certeza de que haverá sempre pessoas a passar. A minha ideia até seria apanhar o teleférico e evitar andar os primeiros 5 km, que são maioritariamente em estrada alcatroada e não tem nada para ver. Mas, como disse anteriormente, era demasiado cedo na temporada e estava tudo encerrado. O caminho serpenteia encosta acima e considero que foi um bom aquecimento! Após chegar ao sítio onde o teleférico parava havia duas hipóteses: ir pelo caminho normal ou pela alternativa que dizem não ser aconselhável com mau tempo. A previsão era meio incerta, por vezes dizia apenas chuva ligeira, outros dizia apenas nuvens e outros davam trovoada e aguaceiros. Decidi arriscar, pois queria muito passar na ponte suspensa e fazer um dos pontos com vista para o massivo do Mont Blanc logo no primeiro dia seria perfeito. Seria... não fosse o tempo! Mas já lá chegamos.

Até à ponte o caminho foi simples e rápido, sempre à volta dos 1700m de altura. Algum nevoeiro, mas o tempo estava optimo e a ponte foi mesmo um bucketlist check que valeu em muito o desvio. Depois de dedicar algum tempo a fotografar tudo à volta e ver as vistas, estava na hora de continuar. Pouco depois de deixar a zona da ponte e começar a subir por entre vegetação e árvores começo a ouvir trovões e ao chegar mais ou menos aos 1900 a 2000m de altura começa a chover, cada vez mais forte e quando decido vestir o impermeável e colocar a capa da chuva na mochila começa a cair uma chuvada incrivel que em poucos segundos transformou o chão de terra num rio em que a água passava por cima dos meus tornozelos e para ser uma imagem ainda mais cómica, se é que conseguem imaginar, começa a cair granizo do tamanho de berlindes. Comecei a não achar piada nenhuma, comecei a questionar se tinha feito a decisão correcta, começo a questionar se deveria descer e procurar ajuda, começo a tentar procurar abrigo, mas a única coisa acima do meu joelho sem ser vegetação eram pedras enormes que eventualmente rolaram costa abaixo. Era impossível proteger-me e a dor do granizo a bater em mim fez-me quebrar um pouco e de repente desejar estar bem longe dali. Mas contra tudo decidi continuar, subir sem parar à velocidade que podia e eventualmente a chuva e o granizo cessaram. Ficou tanto frio de repente por estar a 2050m de altura que as minhas mãos incharam e quase não as conseguia dobrar. Lá consegui tirar uma foto ao caminho e cheguei ao topo do Col du Tricot (2120m), o que significava ter percorrido pouco mais de 10km nesse dia. Como estava cheio de frio e com pés ensopados decidi descer rápido, conseguia ver o Refuge do Miage ao fundo onde iria almoçar e deu-me algum ânimo. Agora imaginem isto: descer durante 1km e passar dos 2120m de altura para os 1550m mais ou menos com cerca de 12kg nas costas, chão ensopado e com frio.

A meio da descida o meu joelho direito começou a apitar, uma dor ligeira na parte de fora devido ao esforço que me deixou um pouco apreensivo, mas que ainda não me dava muito que pensar. Cheguei ao refúgio cheio de frio, começava a chover ligeiramente de novo. Deixei os impermeáveis fora a secar e fui para dentro aproveitar a lareira para aquecer e secar os pés e os ténis e comer uma boa comida quente. Com a energia reposta decidi fazer-me ao caminho pois sabia que ainda me faltavam uns bons km pela frente. A chuva não dava tréguas e lá fui em direcção a Les Contamines durante 5km calmos em que até a chuva decidiu parar. Não fiquei na cidade, continuei caminho por mais 3km até chegar ao parque de campismo Le Pontet, a melhor alternativa deste dia. A entrada é mesmo junto ao percurso, é bastante grande, bom restaurante e casas de banho e melhor de tudo: tinha máquinas de lavar e secar! Sim, melhor de tudo porque tinha algumas coisas molhadas, também entrou alguma água na mochila pois eu levava a tenda acoplada de lado e a rain cover da mochila não conseguia tapar tudo. Montei a tenda, meti as coisas molhadas a secar na máquina por apenas 1€ e fui para o WC tomar um banho e tentar secar o interior dos ténis ao máximo com o secador. Um grupo de americanos já com uma certa idade que também estavam a fazer o percurso decidiram que era uma optima ideia e puseram-se em fila atras de mim para fazer o mesmo com as botas deles de marcas de montanha super caras. E eis que pensei: pelos vistos nem estas botas de montanha são 100% impermeáveis, ainda bem que não investi um dinheirão em algo parecido, não ia servir de nada! Dica: levar ténis de Trail Run leves e permeáveis para que a água entre e saia sem problemas. O que aconteceu com os meus, como eram impermeáveis é que ficaram com um cheiro horrendo o resto da viagem. Bem, todos os males sejam esse! Ah e também me disseram que em Chamonix também tinha caído granizo e era quase do tamanho de bolas de golf. De repente achei que os berlindes que me atacaram era algo insignificante.

O jantar veio cedo (é preciso encomendar), encomendei pequeno-almoço para o dia a seguir, tomei um anti-inflamatório para a dor do joelho não piorar, um relaxante muscular para evitar grandes dores no dia a seguir, alonguei um pouco e fui dormir. Como foi o primeiro dia achei melhor evitar ao máximo ficar dorido no dia seguinte. All in all, que dia incrível!

Resumo do dia: cerca de 22km a andar (passei Les Contamines para ficar no camping) num total de 6h30. Ganho de elevação: 1500m, descida: 1200m


A vista perto do Col do Tricot

A ponte suspensa no caminho alternativo

A descida desde Col do Tricot até ao refugio local


 

Dia 2 - Les Contamines a Les Chapieux (19km, tempo previsto: 7h a 7h30) - acordei com calma, fui buscar o pequeno-almoço, e comecei o caminho por volta das 8h40, tinha cerca de 17km para fazer neste dia e comecei cheio de vontade. Neste dia fui aos 2483m de altura, o ponto mais alto do dia em Col de La Croix du Bonhomme, num ganho de elevação total de 1360m. O caminho começa com uma subida ligeira nos primeiros km e rapidamente chega a inclinação mais acentuada, mas nada que assuste pois a subida é até bastante gradual ao longo do caminho. Longas rectas entre montanhas cheias de neve no topo, passagem por grandes blocos de neve um pouco mais dura em que é preciso cuidado para não escorregarmos, mas um dia com umas das melhores vistas do percurso, todo feito em altas altitudes em que passamos por dois picos. Para passar os blocos de neve eu tinha uns crampons dos mais simples, mas sinceramente nem são precisos. Basta cravarem bem o pé na neve e não há problema nenhum, a única questão é que passado um pouco já se torna chato passar por tanta neve e ter de ter em atenção onde pisamos tirando-nos o foco de todo o cenário em volta.

Apanhei bastantes grupos de pessoas pelo caminho e engraçado que começamos a reparar que são sempre as mesmas caras, regra geral. Fiquei sem rede pouco depois de ter saído do camping e assim fiquei o resto do dia. Pouco depois do ponto mais alto em Croix du Bonhomme encontrei o refúgio com o mesmo nome e fiquei contente pois estava quase sem comida e queria descansar um pouco, usar o wifi para avisar a família que estou vivo e beber algo fresco, mas bom, tinham outros planos para mim. Entrei no refúgio e vi muitas pessoas, estavam a almoçar de volta de uma mesa enorme e todos pareciam ignorar-me. Entrei e perguntei a uma pessoa que passava se tinham algo para comer ao que a pessoa num tom de voz não muito amigável me diz que não porque o refúgio só abria no dia seguinte. Insisti e perguntei se não me podiam vender pelo menos um pão e um pouco de salada e ela disse que a comida era só para os trabalhadores. Ah, a boa hospitalidade francesa! Ao menos disse que me podia vender uma bebida, pedi então uma coca-cola que não só custava 5 euros (e era uma cola farsolas dessas marcas estupidamente baratas, uns 50cents por lata) e ainda ESTAVA QUENTE. Pah, nem tentei perceber ou discutir e nem tinha forças e estava tão estúpido com tudo que nem quis discutir, abracei o meu destino e enchi-me de açúcar para me dar um pouco de energia, já que comida nem vê-la, para a descida até Les Chapieux a cerca de 3 horas de distância, segundo o guia, mas que fiz em cerca de 1h30. Ainda deu para ver umas quantas marmotas na descida, nunca tinha visto nenhuma ao vivo e são bastante bonitas e engraçadas. Mal nos ouvem a aproximar fogem para um buraco, mas ainda deu para filmar algumas.

Les Chapieux no guia diz ser um aglomerado de casas com algum charme e um optimo sitio para descansar mas eu achei algo mais próximo do pesadelo de alguém. O ponto positivo é que é free camping, montei a tenda junto ao rio e fui em busca de comida e o pesadelo começa: não há em lado nenhum. A padaria local que também tem pizzas diz que as pizzas acabaram ao almoço e não tinha tempo de fazer mais massa até ao jantar, uma das pousadas estava fechada e a outra diz que só servia comida a quem estava hospedado lá. Tentei voltar à padaria a ver o que me podiam dar para jantar e diz que só tem mesmo o que está exposto: umas conservas estupidamente over-priced. Um pacote de 6 Oreos custava uns 4 euros, óbvio que mandei fold. Para piorar a minha situação não havia rede em lado nenhum, nem sequer wifi. Tive de andar 4 km exactos estrada fora até ter uma pontinha de rede para poder avisar que estava tudo bem comigo e que não estava caído numa valeta qualquer. Se calhar noutras condições tinha achado piada, mas não era o caso. Como tinha ainda alguns cereais e uma sopa desidratada, foi esse o meu jantar. Escusado será dizer que a fome não foi embora.

O meu joelho continuava dorido e já percebi que era algo que não ia melhorar. Continuei a tomar anti-inflamatório, mas sem sucesso e já usava constantemente uma joelheira que levei para estes casos. Mesmo assim não pensei muito na dor durante a caminhada, estava relativamente tranquilo, mesmo apesar de ter andado cerca de 25km.

Resumo do dia: 17km em 5h44 (poupei quase 2km por ter ficado no camping depois da cidade) + 8km em 90 minutos para fazer uma chamada telefónica. Ganho de elevação: 1390m, descida: 1029m.


A subida para o pico do dia
Col du Bonhomme
Camping em Les Chapieux

 

Dia 3 - Les Chapieux a Rifugio Elisabetta (14km, tempo previsto 4h30 a 5h) - Apesar de estar num vale a altitude eram cerca de 1500m, portanto passei algum frio durante a noite. A verdade é que não quis levar um saco-cama para 0º pois já ocupava muito espaço, o meu era para 5 no mínimo dos mínimos o que realmente não foi o mais indicado, mas nada que chateasse muito, deu para dormir. Acordei às 8h com a chuva a cair, fiquei apreensivo porque nunca tinha acampado a chover mas a tenda mais barata da Decathlon estava ali impecável! Best money for value ever. Fui arrumando as coisas no interior da tenda o melhor possível para ver se a chuva abrandava e quando terminei desmontei a tenda o mais rápido possível, tarefa essa sem problema, não fosse a tenda super fácil de montar e desmontar. Como tinha o impermeável vestido também foi tranquilo e fui até ao WC tratar da pouca higiene matinal. Pouca porque o WC não estava muito limpo então foi mais para lavar os dentes e a cara e vamos embora. Deixei as coisas num banco e fui até à padaria comprar pão e consegui comprar o último!! Ao menos consegui comer um bocadinho de hidratos para a viagem. No regresso ao WC para apanhar as minhas coisas conheci um holandês que também estava a fazer o percurso, já tinha passado por ele na subida do dia anterior e disse-me que estava super cansado e que achava que em Courmayeur ia apanhar o autocarro pelo túnel de volta a Chamonix e iria de carro fazer apenas partes do resto do percurso. Tinha cerca de 15 ou 16kg às costas e cada bota dele devia pesar à vontade 1.5kg, a meu ver decididamente um exagero. Decidimos caminhar juntos neste início de dia, o senhor da padaria indicou que a chuva normalmente desaparece por volta das 9 e na verdade já começava a abrandar e começava a ficar mais ameno, perfeito para o longo dia que vinha aí.

O início desta etapa apesar de ser bonito, pois vamos num vale com as montanhas à nossa volta, acaba por ser uma seca pois tem muita estrada, muitos dos guias que apanhei pela net indicavam para apanhar o autocarro que só passa nos meses de verão e que nos leva até ao Refúgio Mottets em Valle de Glaciers evitando assim esta parte do percurso não tão espectacular. Como já disse anteriormente, estava demasiado cedo na época então não havia autocarro, lá tivemos de ir a pé pela estrada durante cerca de 6km. Pouco antes de chegar ao refúgio o caminho começa a subir um pouco mais pela montanha e o rapaz disse que me estava a atrasar então para eu ir mais rápido e comecei a fazer um optimo tempo a subir chegando num instante ao ponto mais alto do dia: Col de la Seigne a 2516m. Este é dos pontos com melhores vistas do percurso todo, dá para ver o pico do Mont Blanc com 4807m de altura e o Aiguille Noire com os seus 3773m. Quando o percurso começa a subir a seguir ao refúgio as vistas começam a ficar incriveis, mas este topo é mesmo qualquer coisa de especial e assim fica o resto dos poucos km que me faltavam neste dia até chegar ao Rifugio Elisabetta. Passei por um antigo posto fronteiriço, pois acabamos de entrar em Itália, chamado La Casermetta que é agora um museu e centro de informações, mas ainda fechado, descansei um pouco e continuei, pois queria muito comer qualquer coisa. A subida para o refúgio é bastante acentuada e eu só pensava no quanto me iria custar ao descer pois o joelho começa a dar sinais de cansaço e começa a doer mais quando descia e apoiava o peso nele, mas pode ser que com algum descanso agora conseguisse recuperar para fazer bem a descida. 

Esta etapa termina aqui no Rifugio Elisabetta, foram cerca de 14km, nada de muito desafiante, era cedo ainda (cerca das 14h30) e eu sentia-me fresco, tinha demorado apenas 4h até aqui. O Sr. que me atendeu era super atencioso e simpático, que adorava portugueses e que até sabia algumas palavras, disse que não sabia se tinha alguma coisa para o meu almoço e eu disse que era vegetariano e ele sorriu e disse: ah sendo assim posso fazer-te um bom prato de massa e molho de tomate, o que dizes? Claro que disse logo que sim, que era perfeito. Estava esfomeado! Enquanto esperava comecei a ver o mapa, os planos que tinha e decidi que não queria ficar ali a dormir pois ainda era bastante cedo, ia ficar a fazer o quê durante a tarde? Bem, ok, se calhar tinha sido bom para o meu joelho. A etapa seguinte iria ser bastante complicada, tem um acumulado de subida de apenas 580m, mas depois descemos 1500m em 10km e nos guias indica que se houver problemas físicos o melhor é evitar este percurso e ir pela alternativa em Val Veni caso o teleférico esteja fechado. Ora, como em Les Houches não estavam a funcionar achei que só tinha uma alternativa.

O almoço veio, das melhores massas que já comi até hoje. Se era da fome ou se era mesmo boa? Não sei, mas o que interessa foi o que me soube no momento e a memória que ficou! Descansei um pouco e mandei-me de novo caminho fora, a ideia era ficar num camping algures em Val Veni, antes de Courmayeur, onde termina esta etapa e aproveitar as vistas do vale ladeado de montanhas. A descida correu bem, deu para gerir bem a dor no joelho pois era bastante gradual. Apesar de ir pelo vale as vistas não deixavam de ser espectaculares, montanhas em toda a volta com neve em cima e a partir de uma certa altura devido ao degelo começam a formar-se pequenos lagos que depois convergem para um maior e eventualmente transforma-se num rio com alguma corrente. Prados verdes a perder de vista enquanto a estrada serpenteia pelo vale com o rio ao lado e algumas cascatas montanha abaixo fazem com que esta alternativa não seja menos espectacular que o original. Comecei a chegar à civilização e passei por uns quantos campings e decidi ficar no camping La Sorgente. O joelho já estava mesmo a dar as últimas e a implorar que eu desse o dia por terminado e assim foi. As pessoas do camping eram super prestáveis, o preço era em conta e dava para encomendar jantar e pequeno-almoço. Montei a tenda e olhei em volta e mesmo após 3 dias de vistas de cortar a respiração sempre que abria os olhos e olhava em redor ficava pasmado. Ali estava eu, um ser humano minúsculo comparado com a imensidão da montanha, tão frágil em relação à natureza, numa pequena tenda num camping rodeado de montanhas enormes com pequenas cascatas a brotar. De repente o joelho deixou de doer, por uns momentos as preocupações foram embora. Deitei-me na relva, absorvi o sol e deixei-me levar pela brisa e adormeci.

Acordei da sesta e fui buscar o jantar, não me lembro exactamente do que comi, mas sei que era comida a mais mesmo para quem estava a morrer de fome como eu. Comi tudo mas senti que tinha de ir a rebolar para a tenda. Vi o mapa, faltavam cerca de 5km até Courmayeur, era optimo para me abastecer de algumas coisas e fazer então a etapa seguinte até ao Rifugio Bonatti. Desta maneira já consegui poupar 1 dia de caminhada.

Resumo do dia: 24km em cerca de 6h com 1 hora e qualquer coisa para almoço. Feitas quase 2 etapas em 1 dia. Ganho de elevação: 1210m, descida: 1230m.


Saída de Les Chapieux

Vista da subida após Refugio Mottets

Col de la Seigne, 2516m

Uma das inúmeras placas pelo caminho

Lac Combal, em Val Veni

Prados de Val Veni



Dia 4 - Camping Monte Bianco "La Sorgente" a Rifugio Bonatti (17km mais ou menos. Era suposto ser de Courmayeur e apenas 12km em 4h30) - Acordei antes das 9h, lentamente. Tomei o pequeno-almoço e fui desmontar a tenda e meti-me a caminho às 10h, a pessoa que me fez o checkout do camping indicou-me que até Courmayeur o melhor seria seguir a estrada, mas se quisesse para esperar um pouco que há sempre carros e autocarros a passar e me levariam para a cidade. Decidi ir a pé, estava fresco e bastante agradável e não sabia quando passariam os tais carros ou autocarros. Courmayeur é uma cidade de montanha com o túnel que liga directamente a Chamonix em França e vive muito do turismo tanto de verão (trekking) como de inverno (ski). O normal das pessoas que fazem o TMB é marcar um hotel na cidade e ficam a descansar 1 dia aqui aproveitando tudo o que a cidade tem para oferecer. Eu apenas fui abastecer alguma comida, fui à farmácia comprar umas coisas para o meu joelho e continuei no meu caminho, uma subida de pouco mais de 4km e de quase 1000m de acumulado esperava por mim. Descansei um pouco, vi as mesmas caras que via todos os dias ao fazer o TMB e mandamos aquele: hey, you again! e cada um seguiu o seu caminho. Liguei para o refúgio para marcar a noite e garantir que tinha uma cama e comida vegetariana, em todo o lado que li diziam ser o refúgio com as melhores vistas do percurso, não podia deixar escapar a oportunidade.

A subida é tramada, começa a subir logo na cidade até entrarmos na floresta densa e a inclinação assim se mantém, sendo mesmo muito exigente para quem leva bastante peso nas costas. Felizmente eu não ia assim tão pesado, a subir o meu joelho não se queixava e consegui manter um ritmo excelente, sem parar. Conforme vamos subindo as vistas sobre Courmayeur são incriveis e não é nada aconselhável a quem se impressiona com as alturas.  Após os 4km e qualquer coisa sempre a subir a inclinação desaparece e lá vamos nós no topo da montanha a cerca de 2000m de altura a serpentar com o caminho e a passar por pequenos percursos de água. Perto do destino começou a chover ligeiramente, mas nada que abanasse o espírito, estava contente, fiz um tempo excelente e cheguei por volta das 16h, fiz o check-in, tomei um banho quente e sentei-me um pouco junto à porta a apreciar a vista de 2 glaciares e de paredes enormes que compunham o massivo do Mont Blanc, sem dúvida uma das melhores vistas até agora. Passado um pouco chegou um rapaz americano, o Mike, o qual eu tinha ultrapassado na subida. Estivemos um pouco na conversa, indicou-me que ainda era cedo e que iria continuar e dormir algures no meio da montanha e que talvez nos víssemos no final da etapa do dia seguinte pois segundo os nossos planos ia ser o mesmo destino. O resto do dia foi passado à conversa na sala comum com as várias pessoas que via sempre no caminho, havia malta da Austrália, do Canadá e da Holanda. O jantar foi optimo, estivemos mais um pouco à conversa e foi hora de ir dormir e descansar o joelho.

Resumo do dia: 18.7km em 5h40. Ganho de elevação: 1164m, descida: 660m.


Inicio da subida em Courmayeur
Courmayeur ao fundo
Entre o final da subida e o Rifugio Bonatti


Dia 5 - Rifugio Bonatti a La Fouly (20km, tempo previsto 6h a 6h30) - Comecei o dia tarde, mas não estava preocupado. Quando saí, perto das 9h30, já não havia ninguém no refúgio a não ser os trabalhadores. Tomei um bom pequeno-almoço e ainda levei um pequeno lanche pelo caminho. Tinha 20km pela frente, uma subida exigente de 4km pelo meio, mas o resto do caminho parecia tranquilo segundo o guia. Estava bastante frio, saí com o impermeável vestido, gorro e tudo. Chuviscava por vezes e parecia querer nevar, fui presenteado com um arco-íris enquanto caminhava pelo trail que rasgava a montanha, com um vale e um rio do meu lado esquerdo, eu sei que repito muito: as vistas isto e as vistas aquilo, mas a verdade é que mais uma vez continuavam a surpreender. Desci até Val Ferret onde existe um refúgio que estava fechado ainda, havia algumas obras em estruturas espalhadas pelo vale e após passar uma pequena ponte de madeira a subida começa de novo para nos levar a Grand Col Ferret com os seus 2537m de altura. Apesar de o TMB ser super seguro, convém sempre estar atento ao caminho, verificar a sinalética existente para garantir que estamos no trail correcto, olhar para o terreno à nossa volta para perceber se pode haver derrocadas de neve caso ainda haja muita, ter cuidado com a lama, com pedras, etc. Nesta subida passei por blocos de neve gelada que estava a derreter e passava bastante água por baixo, convinha fixar bem o pé para perceber não só que era seguro estar em cima como não escorregava ladeira abaixo, o que não ia ser nada bonito. 

A 400m do topo a pouca chuva que estava a cair começa lentamente a transformar-se em neve e começa a cair cada vez com mais força cobrindo tudo à minha volta com um manto branco. A neve não ficava presa a mim, batia no impermeável e ia para o chão então estes minutos até ao topo foram incriveis, foi o meu dia favorito, estava frio, mas sentia-me realizado, a subida não custava, o nevoeiro e a neve davam uma mística fora do normal a toda esta subida e levantou-me em muito o espírito. Cheguei ao topo em menos de nada, estava finalmente na fronteira da Itália com a Suiça, um vento que quase me fazia voar, mas sentia-me bem, confiante e feliz! Mesmo com toda a neve o caminho estava bem delineado, percebia-se facilmente qual era a direcção a tomar e cerca de 1km a descer depois do pico a neve deu de novo lugar a montanhas verdejantes embora com algum nevoeiro. A parte Suiça do TMB deve ser a mais fácil, mas não menos desafiante pois são dias com muitos km. A descida de hoje foi rápida, fiz 10km a descer em cerca de 3 horas, o meu joelho não estava muito mau, mas no final do dia já pedia por descanso pois mesmo assim andei cerca de 21km.

Parei no camping em La Fouly e nota-se logo que é a Suiça no preço. O camping foi cerca de 15 euros por uma noite, mas tinha excelentes condições. E o engraçado é que os Suíços confiam mesmo na boa vontade das pessoas! Não havia ninguém no parque quando cheguei, só a partir das 17h, então montei a tenda, dei uma volta pelo parque, falei com o casal de holandeses que conheci nos dias anteriores e então quando a recepção abre temos de ir lá pagar. O parque é tão, mas tão grande que se eu ficasse numa pontinha duvido que alguém soubesse. Fui tomar um banho e estes wc's tinham algo que nunca tinha visto: estão a ver o secador de mãos de parede? Tipo isso, mas para o corpo todo! Passam numa espécie de porta e levam com ar quente para secar! 

Entretanto chegou o Mike e fomos até à cidade fazer umas compras e comprar pizza para jantar na única pizzaria da vila. Claro que a sendo Suiça a pizza ficou em cerca de 20 euros, mas queria muito encher-me de calorias. Voltamos ao camping, o final de tarde estava a ficar ainda mais frio e fomos a uma cabana que existe no meio do parque e indica que podemos usar tudo o que quisermos, com responsabilidade é claro. Tem dois computadores para aceder à net, tem várias mesas, jogos de tabuleiro e uma lareira. Nem pensamos duas vezes e acendemos um lume que nos ia aquecer por umas horas enquanto comemos pizza e a fruta que compramos e falávamos sobre os mais variadíssimos temas da actualidade até que cada foi para a sua tenda e demos o dia por terminado.

Resumo do dia: 21.5km em 6h30. Ganho de elevação: 1264m, descida: 1705m.


Arco-íris logo após sair do refugio

Bloco de neve no meio do caminho

Topo do Grand Col Ferret

Ferret, já na Suiça


Dia 6 - La Fouly a Champex (15.5km, tempo previsto de 4h a 4h30) - Apesar de serem 15km, a previsão seria de 4h então deixei-me dormir à vontade, descansar o joelho e ir com mais energia. O dia nasceu com muito sol e calor o que por si só já me dava outro alento. O Mike também acordou tarde então decidimos fazer o caminho juntos, arrumamos tudo com calma e fomos à vila comprar uns walking-sticks novos para ele pois tinha partido um e deu-me o outro já que eu tinha vindo apenas com um. Fiquei super agradecido. Como íamos a conversar devemos ter passado uma sinalização na saída da vila e reparamos que estávamos do lado errado do rio e como não queríamos andar para trás lá fomos nós até ao leito do rio, saltar de pedra em pedra até conseguirmos passar para o outro lado. Apesar de caminharmos num vale, a paisagem não era de todo menos impressionante com as várias vilas que subsistem da criação de gado sempre a aparecer, com as suas casas e estábulos em madeira, tornam todo este dia bastante idílico. 

Entramos em grutas que não sabíamos bem para que serviam, fizemos festas a vacas que se alimentavam nos pastos, vimos lesmas enormes, do comprimento de uma mão, vimos os resquícios da segunda guerra mundial ao chegar à vila de Champex e fizemos tudo isto enquanto conversávamos e dizíamos parvoíces atrás de parvoíces.

O Mike decidiu continuar caminho e tentar chegar perto da alternativa do dia seguinte em Fenêtre d'Arpette, não queria gastar dinheiro em camping na Suiça de novo (como eu compreendo) e eu fui descansar ao camping Les Rocailles, super acolhedor, boa relva para a tenda e bons chuveiros. Para terminar o dia fui buscar jantar, voltei à minha comida favorita: pizza! Há que repor calorias, certo? E dei por terminado o dia de hoje.

Resumo do dia: 15.6km em 5h30. Ganho de elevação de 600m, descida de 780m.


Branche D'en Haut ao fundo

Alguém tem uma fixação por duendes

Champex-Lac

 

Dia 7 - Champex a Trient (16km, tempo previsto de 5h30 a 6h) - Mais um dia que me deixei dormir pois também não queria chegar ao final da etapa demasiado cedo. Com calma arrumei tudo, fui comprar uns mantimentos e apanhei o percurso ao sair da vila. O tempo estava excelente e eu gostava muito de ir pela alternativa, Fenêtre d'Arpette, mas o caminho é o mais exigente de todo o percurso sendo preciso subir e descer por grandes pedras e como tinha o joelho massacrado achei que era melhor não arriscar. Fica para um futuro próximo, espero eu! 

O dia de hoje começou calmo, nada de subidas ou descidas nos primeiros km e passagem por muitas partes em alcatrão. O caminho não me pareceu estar muito bem delineado nesta parte pelo que andei pelo meio da floresta sempre meio perdido, mas como tinha a estrada ao lado e o mapa batia certo, não me preocupei muito, a não ser algures entre o km 4 e 5 que me devo ter enganado numa curva e comecei a subir e a chegar a sítios onde não havia caminho e só havia vegetação. Havia sinalética de uma corrida de trail e talvez fosse isso que me enganou e fez andar perdido por uns largos minutos, praticamente à volta da mesma área. Voltei para trás e finalmente consegui perceber para onde tinha de ir.

A subida começa por volta do km6 e apesar de ser exigente como todas as anteriores não tinha grande dificuldade. Deu para mergulhar os pés num rio perto do topo da montanha enquanto comia qualquer coisa e descansava um pouco e todas as pessoas que passavam diziam que era uma excelente ideia porque estava muito calor, a água fresca deu-me bastante energia para continuar e cheguei ao topo em menos de nada com uma vista incrivel sobre a cidade de Martigny-Combe. Havia também um restaurante/bar aberto nesta zona e estava realmente cheio de gente, tudo a descansar da sua caminhada e a comer qualquer coisa. Pensei parar pois já passava pouco depois das 13h, mas sabia que já não faltava muito para o destino final do dia e assim distanciava-me dos grandes grupos de pessoas. 

A descida, porém, foi a pior parte do percurso todo que fiz. Odiei. Era bastante inclinado, muito estreito e cheio de pedras e raízes de árvore e percebi porque se chamava o Trilho Bovino: era mesmo o caminho que as vacas faziam para descer da montanha e estava cheio de excrementos. Não aproveitei nada da descida, como era muito inclinado e com as raízes parecia que estava a descer escadas o meu joelho começou a doer cada vez mais do esforço, estava sempre preocupado em não tropeçar ou escorregar para não cair em cima de uma bosta qualquer, cheirava mal, foi mesmo um pesadelo! Acho que fui o caminho todo a refilar sozinho em voz alta, qual maluquinho qual quê. Foi desesperante e só queria que aquele dia terminasse. Uma hora depois estava em Forclaz e ri-me, não fosse este o nome de alguns produtos da Decathlon, e significava que já tinha saído do caminho horrível. Já faltava pouco! Logo a seguir a Forclaz passamos por uma ponte de metal na ladeira da montanha com vistas sobre Trient e toda a sua envolvência e a vista era tão boa que quase esqueci o que acabei de descer. Quase... era impossível esquecer! 

Em vez de virar para Trient, onde seria o final do caminho, fui para Le Peuty. Não só o TMB passava por lá e escusava de andar para trás no dia a seguir como sabia que tinha uma zona de camping não delineada onde podemos montar a tenda à vontade e por volta das 18h passa alguém para recolher o dinheiro da estadia que se não estou em erro era algo como 5 ou 6 euros. Cheguei por volta das 15h, montei a tenda e fui ao único restaurante ver se tinham algo para eu comer e surpresa: tinham um excelente hambúrguer vegan! Devorei tudo num instante numa esplanada com vista para um glaciar. Podia pedir melhor? Nem pensar!

Sendo que estava na Suiça roaming é coisa que não existe e fui procurar um sítio com wifi mas sem sucesso. Fui ao centro da vila passear, bebi um café e comi um Toblerone dos pequenitos pela módica quantia de 7 ou 8 euros, isso mesmo... leram bem! Por 1 café e 1 mini Toblerone. Ao voltar à tenda passei por um grupo de pessoas que também estavam a fazer o TMB ou parte dele e um deles até me disse: Hey. I think I know you! You are following us all around! Teve bastante piada no momento, apanhou-me desprevenido. Passei o resto do dia na tenda a dormitar, jantei e pedi pequeno-almoço e reforço para almoço no dia seguinte, estive à conversa com os Holandeses e os Canadianos de há uns dias, vimos um grupo de ingleses a beber até mais não e a dizer que iam para uma festa que estava a acontecer no centro da vila e fui dormir ao som dos badalos que as vacas têm ao pescoço. Deu para esquecer a descida do inferno.

Resumo do dia: 16.7km em 4h50. Ganho de elevação: 860m, descida: 1000m.

Pausa para descanso

Vista sobre Martigny-Combe

Olha a Decathlon!

Vegan Burguer e o glaciar ao fundo

Camping site em Le Peuty


Dia 8 - Le Peuty a Tré-le-Champ (12.5km, tempo previsto de 5h) - Acordei por volta das 7, já estavam os ingleses a começar o caminho depois de uma noite carregada de álcool e pouco descanso. Admiro a perseverança deles, devo dizê-lo. Arrumei tudo, fui buscar a comida que tinha encomendado no dia anterior e pus-me a caminho pois tinha uma subida dificil pela frente logo de início. Esta subida até ao refúgio Col de Balme, que faz fronteira com França, faz-se bem apesar de ser bastante inclinada e o caminho serpentear montanha acima o que por vezes faz parecer que não saímos do mesmo sítio. Mesmo assim fiz um tempo bastante bom até ao refúgio a cerca de 2100m de altura e até passei os ingleses a meio que estavam a bufar de tão cansados que estavam. Pudera! Esta zona tem muitos caminhos que convergem, há sempre muitas pessoas a passar a pé, a correr ou de bicicleta e consegue-se ver as povoações à distância nos vales, o maciço do Mont Blanc em toda a sua glória (primeira vez que aparece a seguir ao Rifugio Bonatti) e arrisco-me a dizer que esta secção do TMB é capaz de ser das mais bonitas pois caminhamos bastante tempo à volta dos 2000m de altura, desde o refúgio até Aiguillettes des Posettes com os seus não menos imponentes 2201m com vistas de cortar a respiração.

Em Aiguillettes des Posettes aproveitei para almoçar com o Mont Blanc ao fundo e perdi-me um pouco com os meus pensamentos e descansei para me preparar para a descida que aí vinha, sabia que ia ser relativamente dificil, mas estava confiante, sentia-me fresco e com vontade mas de qualquer maneira apreensivo pois passávamos dos 2201m de altura para os 1400. em cerca de 3km. A única coisa chata desta parte do percurso é a quantidade de pessoas que fazem caminhadas de um dia até ao topo o que por vezes torna o trânsito um pouco mais dificil. Numa parte da descida com pedras grandes e cheias de terra escorreguei, apoiei o meu peso todo num dos walking sticks e o mesmo partiu em baixo. Fiquei contente por o ter comigo, acho que me salvou de ter dado um bom bate-cu ou ter-me aleijado na mão ou cotovelo caso tentasse aparar a queda. Felizmente o meu joelho não sofreu e continuei com a descida.

Cheguei ao fim desta etapa sem grandes problemas e bastante cedo. Descansei um pouco, fiz refill na água e vi que davam alguma chuva para o dia seguinte. Acontece que no dia seguinte a etapa passa por umas escadas verticais em ferro e eu não só queria ter uma vista limpa do que estava à minha volta como também não queria correr o risco de escorregar nas escadas. Após algum pensamento sobre o assunto, visto estar fresco e como a etapa seguinte era de apenas 8km decidi arriscar e continuar.

Acontece que esta etapa tinha 8km apenas pois o caminho era bastante exigente fisicamente, a subida inicial passa dos 1450m para os 2132m em 4km, subida essa feita em algumas escadas de ferro junto à ladeira da montanha, o que era sem dúvida algo brutal de se fazer, mas bastante cansativo, principalmente depois de já ter caminhado 12km e feito um acumulado de cerca de 1km em altura, portanto devo dizer que pelo menos 3 desses km foram feitos bem devagar. Consegui avistar uma espécie de cabra que habita por aqui, o Ibex, que até então ainda não tinha visto e o caminho tem uns passadiços em madeira que se misturam bem com a paisagem mantendo o barulho visual a um mínimo. Fazer as escadas em ferro foi sem dúvida um dos pontos altos do dia, junto com a vista do almoço e adorei chegar ao topo em Têtes aux Vents onde existem vários lagos pequenos, perfeitos para fotografar com o Mont Blanc ao fundo. Nesta altura fiquei um pouco baralhado com o caminho, as setas pareciam indicar para um lado, o mapa parecia que ia para outro e acabei por recorrer à app All-Trails e apanhei, sem querer, a alternativa que era algo que queria evitar. Comecei a subir cada vez mais de novo, novamente umas escadas em ferro e estranhei pois não era suposto. Foi quando percebi que já estava a meio da subida para o Lac Blanc. Bem, não ia certamente voltar atrás agora apesar de sentir o joelho já bastante massacrado. O lago estava gelado, como o nome indica é mesmo o lago branco, a 2352m de altura, mas era apenas isso. Tinha um refúgio que mais uma vez, estava fechado e comecei a descer até ao meu destino. A descida custou-me bastante, era muito inclinada e o meu joelho estava mesmo a pedir por descanso, numa hora desci do Lac Blanc até La Flégere num desnível de 400m, mais inclinado do que aquilo que eu esttava a contar para terminar o dia. Só queria um duche, comida quente e esticar-me, mas... bem... nao ia ser já.

O refúgio de La Flegére estava encerrado, parecia estar completamente ao abandono. Havia o teleférico ao lado, encerrado também. Comecei a desesperar porque não tinha comida, queria muito tomar banho pois não tinha tomado no dia anterior devido a não haver condições e não tinha nenhuma opção viável neste momento, depois de ter feito 21km. Percebi que podia ou acampar ali na zona e comer apenas uma mão cheia de cereais que tinha comigo ou então descia até ao vale de Chamonix e ia para um camping. No google maps dizia que o camping estava a pouca distância e decidi arriscar. Estava a escurecer e a descida foi horrível. Estava mal sinalizada, enganei-me várias vezes e tinha de andar vários minutos para trás, era bastante inclinada com muita vegetação e caruma o que por vezes me fazia escorregar e bater com o cu no chão. Só pensava que se ficasse de noite não tinha sequer maneira de colocar a tenda porque era tudo estupidamente inclinado. Fiquei contente quando comecei a ouvir água a correr, significava que estava perto do vale e sorri quando finalmente ouvi um carro a passar, mesmo não conseguindo ver nada por causa das árvores. Mesmo assim ainda tive de caminhar mais 2km até ao camping chegando lá por volta das 21h. Fui recebido à boa maneira francesa, compreendo que os horários são para cumprir e já tinha a portaria encerrada desde as 20h, mas toquei à campainha e veio uma pessoa muito mal-humorada falar comigo, expliquei a situação do que me aconteceu nesse dia e pedi, por favor, se me deixavam montar a tenda e dormir. Pediu-me a identificação e que faríamos contas no dia seguinte e indicou que os chuveiros fechavam dali a 30 minutos, mas tudo com um mau humor incrível. Fui montar a tenda bem rápido e fui finalmente ao wc fazer a minha higiene. Já me sentia fresco e em paz e acho que a água do chuveiro saiu bem escura, I wonder why! Mandei vir um Uber Eats, jantei e fui dormir, completamente de rastos.

Resumo do dia: 28.7km em 11h. Ganho de elevação: 2250m, descida: 2440m. Duas etapas em 1 dia.


Chegada a Col de Balme

Vista sobre o Mont Blanc desde Aiguillettes des Posettes

As famosas escadas

Subida das escadas

Dois dos lagos no topo de Têtes aux Vents


Dia 9 - Acordei a pensar se iria subir tudo de novo e fazer a última etapa do percurso. Podia deixar tudo na tenda e voltar ao final do dia, se o teleférico estivesse a funcionar até podia poupar na subida. Fui ler o guia e o que estava escrito demoveu-me. Ok que o caminho tem vistas incriveis sobre o pico mais alto, o Mont Blanc e que tem miradouros espectaculares sobre o vale de Chamonix, mas também é verdade que muito desta etapa está descaracterizada devido às estâncias de ski que rebentaram com grande parte do caminho para fazer as pistas. A descida até Les Houches também é muito complicada fisicamente e comecei a achar que realmente não valia a pena massacrar o joelho. Fui à recepção tratar do check-in, indicaram-me que tinham lavandaria e obviamente que fui meter toda a minha roupa a lavar. Enquanto esperava fui dar uma volta pela vila e vi que o teleférico estava aberto e pensei que se calhar ainda subia aqui e descia num antes de Les Houches. O preço eram 32euros ida e volta e decidi que não valia o dinheiro, principalmente porque já tinha planeado fazer o teleférico de Aiguille du Midi.

O meu bom amigo Gaiola (chequem aqui o IG, sobre tours na natureza e workshops de fotografia em PT) tinha-me dito que existia um glaciar que se podia ver por dentro chamado Mer De Glace e claro que foi a minha primeira escolha em Chamonix. Apanhei o autocarro para o centro da cidade e a cena fixe é que se ficarmos num camping temos um passe de autocarro gratuito durante a nossa estadia. Saí no centro e fui a pé até ao sul da cidade para apanhar um comboio tradicional que sobe montanha acima até ao início do percurso. Apanhamos ainda um teleférico e depois vamos a pé num infelizmente infindável caminho com pontes e escadas tudo em ferro. Infelizmente porque conforme vamos andando existem placas a indicar onde estava o glaciar no ano X e é assustador ver o quanto recuou, digamos que em 1850 chegava até ao vale de Chamonix e desde então recuou cerca de 2km, a maioria dos quais nos últimos 30 anos. Não sei quantos anos mais teremos até não se conseguir mais visitar este glaciar.

Realmente isto foi das melhores coisas que podia ter feito, estar dentro de um glaciar esculpido no gelo com várias salas com mobiliário em gelo e animais e um pequeno museu com fotos do antigamente é algo que nunca pensei que fosse tão brutal. Claro que no interior estava à volta dos 0 graus e eu estava de shirt e calções, mas naquele momento estava tão distraído com tudo que nem sentia o frio. Desci do glaciar feliz por ter feito a visita, mas muito apreensivo com o caminho que a sociedade e o mundo está a tomar, como os grandes donos do mundo não querem saber do ambiente. Se quisessem não punham a responsabilidade no consumidor, somos os últimos na cadeia de responsabilização desta idiotice toda. Mas isto não é conversa para se ter aqui, vamos continuar a celebrar esta viagem épica.

Fui almoçar ao centro de Chamonix, encontrei uma pizzaria super barata e bastante boa, algo raro por aqui e descobri também que muito perto do terminal dos autocarros que vêm de fora existe um camping. Quem diria que praticamente no centro da cidade de Chamonix existe um camping? É lá que quero ficar nos próximos dias. A meio da tarde voltei para o camping onde estava e descobri que tinha o nome do glaciar (nem tinha reparado) e fui descansar, comi umas coisas que tinha comprado para o jantar e fui dormir.

Mer de Glace

Mer de Glace

Placa indicativa do nivel do glaciar

Vista do camping

Dia 10 - Fiz o checkout do camping e fiquei admirado como era caro, ao nível dos campings da Suiça, paguei mais de 30 euros. O bilhete gratuito para andar de autocarro não compensou o preço da estadia e ainda bem que saí. Devia ter estudado o preço antes. 

Fui fazer o check-in no outro camping e confirmei o preço antes e realmente era bem mais em conta, e fui dar uma volta enquanto esperava que um dos meus melhores amigos que vive em Paris chegasse. É verdade, assim que lhe disse que tinha terminado o percurso e tinha uns dias livres em Chamonix ele agarrou no carro e conduziu 600km para estarmos juntos. Foi um dia tranquilo, passado a comer aqui e ali, a conhecer todos os recantos de Chamonix e fomos ainda comprar os bilhetes para o Aiguille du Midi, um dos picos aqui mesmo ao lado de Chamonix com os seus imponentes 3842m de altura. 


Dia 11 - Acordamos cedo pois o bilhete era para as 9 da manhã. Estava super excitado com o facto de subir a um dos picos, embora que de teleférico e não a pé. A subida é tranquila, mas a meio já se começa a sentir a altitude sickness. Sempre que estava a fazer o TMB e começava a ficar com uma ligeira, muito pequena dor de cabeça olhava para o altímetro e via que passava dos 2200m de altura, bastava beber um pouco de água que ajudava e a ligeira dor desaparecia logo. Aqui ia bem mais acima disso, quando saímos do teleférico e subimos as primeiras escadas é que percebi o que era estar tão alto. Fiquei ofegante e não percebia porquê. Só depois que se fez luz: são quase 4km acima do nível do mar. Passei a subir as escadas bem mais devagar.

Acho que visitámos tudo o que havia para ver aqui, o museu, as exposições, o túnel de gelo (sim, as paredes eram todas em gelo), e o incrível Pas Dans le Vide, uma varanda toda feita em vidro (tecnicamente deve ser algo como plexiglass), chão incluído, em que parece que estamos suspensos no ar com vista sobre o vale de Chamonix e nem tenho palavras para o quanto toda a experiência é espectacular.

No meio disto tudo o tempo é que não estava a ajudar, estavam bastantes nuvens à nossa volta, o que por um lado dava uma mística fixe a todo o sítio, mas não se conseguia ver a montanha e o vale de Chamonix ainda demorou a aparecer. Esta estação é ainda usada por vários alpinistas que vão fazer os picos, incluíndo o do Mont Blanc, então é ver montes de malta a vestir os equipamentos todos, a abrir o portão e PUF... desaparecem no meio da neblina e devo dizer que me provocava um pouco de ansiedade ver aquilo. Já imaginaram? 3800m de altura e entram no meio do nevoeiro sem visibilidade. Toda esta visão deixava-me com um pouco de inveja, confesso (gostava de ser um dos alpinistas) mas ao mesmo tempo com ansiedade a pensar: e se corre mal? E se cai? E se.... eu sei, os grupos estão presos por corda entre eles e são pessoas altamente experientes e que conhecem a montanha como a própria casa, mas mesmo assim não deixava de me sentir nervoso com toda aquela visão. 

Descemos quando já estava a ser difícil aguentar a altitude sickness, estava bastante enjoado e com dor de cabeça que apesar de não ser forte era incomodativa. O meu amigo Ludovic foi embora, ainda tinha 600km para fazer nesse dia e eu aproveitei a tarde para ir a um lago meter os pés de molho e descansar, dei uma última volta pela cidade para absorver toda a sua cultura e pensar que quero muito voltar com a minha família e mostrar-lhes o quão incrível a montanha é! 

Alpinistas
Into the Void
Vista do teleférico
Vista do topo de Aiguille du Midi
Lago em Chamonix para descansar
Michel G. Paccard (1757 - 1827)

E é isto, foram estes os meus dias no Mont Blanc e em Chamonix. O balanço que tiro desta viagem é que foi das coisas mais épicas que já fiz e ainda por cima, totalmente sozinho. Não fui à procura de iluminação ou espiritualidade, mas vim de lá com uma calma diferente, a pensar naquilo que realmente representamos no mundo e no que oferecemos aos outros à nossa volta. Não é a viagem de uma vida, aliás, para mim, nenhuma é! Todas são especiais à sua maneira, a vida é feita disto: viagens, conhecimento, memórias e até passagem de informação para que outros possam ter coragem de fazer o mesmo. Espero que este texto sirva de mini guia para que outras pessoas possam fazer o TMB, sozinhos ou acompanhados, é excelente para todos e não precisam de estar em máxima forma para o fazer. Podem fazer com calma em 11 dias, podem fazer mais rapidamente em 6 ou 7, podem levar pouca coisa e só dormir em refúgios, podem ir um pouco mais pesados e dormir em campings, mas vão! Não sei quantos mais anos vamos ter para continuar a ver estas montanhas cheias de neve mesmo em pleno verão. Aproveitem, já dizia o Henry Rollins: You only got life time, GO!

 

Stay Fresh!


1 comentário:

maria ermida disse...

Muito obrigada pela partilha, o texto está claro o que nos permite viver um pouco a tua aventura Fiquei a pensar, e adorava, talvez em pernoita em parques para se tornar mais fácil. Obrigada, parabéns!